sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Poeta Disfarçado


Numa certa tarde vivendo deliciosamente o meu marasmo, fui surpreendido por um gato que aparecera em minha casa. Minha mãe, grande amadora de qualquer tipo de bicho, se danou a alimentá-lo. Minha mãe sempre alimenta os bichos que pairam sobre a nossa calçada. Ela alimenta também as pessoas, mas isso está fora de cogitação no momento, pois quero falar sobre o gato. Ele era um gato esplêndido! De raça que ainda desconheço, mas de belos pelos cinza-claros.
Os olhos do gato são azuis. Mas não um azul qualquer. É aquele azul que te faz pensar que por trás das retinas, há alma. E uma alma superior até mesmo à nossa. Todos os dias o bendito gato passava entre as grades do nosso portão e miava para que minha mãe o alimentasse. Até que por achar conveniente, decidiu ficar conosco. A independência do gato me fascinava! Veja bem, a escolha de ficar foi dele, não nossa. Era como se fôssemos merecedores de tal hóspede. Isso me deixava feliz e privilegiado. 
Chegou a hora de nomeá-lo e como considerado o mais criativo da casa, fui incumbido disto. Primeiro passei a chamá-lo de Gato. Mas minha irmã após boas risadas e me chamar de Senhor Óbvio, me obrigou a trocar o nome do bichinho. Para honrar a função de mais criativo da casa, escolhi batizá-lo como Poeta. A juíza da casa, minha irmã, dissera que esse nome até era legalzinho pra ele. E assim ficou. Poeta. E havia alma em seus olhos. Ele sem dúvida era um poeta. E não era um poeta só por haver alma em seus olhos. Incontáveis vezes o flagrei com um sorriso irônico como quem acaba de completar um verso com uma palavra que se encaixara perfeitamente na ultima frase. Ele fazia poesia; e das boas. Aquelas que não precisam de palavras. Aquelas poesias mudas. Ele era, certamente, um poeta disfarçado.
Porém o surgimento repentino do bicho na nossa casa nos fizera pensar em quem seria o verdadeiro dono. Ele era um gato bem cuidado, não havia dúvidas quanto a isso. Seus pelos eram bem lisos e seu comportamento falava por si: reservado, aparentemente comprometido com sei-lá-o-quê. Era invejável como ele parecia ter mais responsabilidades do que eu. E talvez tivesse mesmo.
Ele era um gato fugido. Descobrimos que os verdadeiros donos do gato eram os vizinhos da frente. A patroa da minha vizinha (que conforme citado pela vizinha era uma madame muito rica) havia dado o gato a ela. Só que o gato fugira e eles não queriam se dar o trabalho de procurá-lo. Ao devolvermos o gato, ela agradeceu. Porém dias depois o gato voltou pra nossa casa. Ao devolver novamente, ela dissera que: já que o gato insistira tanto em ficar conosco, podíamos tê-lo. Não gostei do termo. "Não somos nós que temos o Poeta; é ele que nos tem’’ - a corrigi mentalmente. Portanto, o gato era, definitivamente nosso. Aliás, nós éramos definitivamente dele.

Ter um gato em casa como um bom e velho amigo, me fazia lembrar do Mickey, que era um gato que eu tive na minha infância. O Mickey era tão irônico quanto o nome. Ele era um gato com nome de um rato. Talvez ele sumira por puro descuido de querer procurar o rato que era ele mesmo. Eu amava o Mickey, tinha certeza disso; mas ele de uma noite pra outra, sumiu. Ou se achou. O procurei por toda a quadra mas nunca o encontrei. Sofri a perda de um dos meus melhores amigos. Mas ali estava, espichado no sofá, o Poeta. O meu novo amigo que, de tão sereno, me incitava a também ficar. E era um jogo de quem ficaria mais sério. Um jogo de quem rir perde. Eu nunca ganhava. Ele nascera para aquele jogo, só pode!
Da mesma forma que o Mickey sumiu, eu receava que o Poeta também o fizesse. Eu tinha medo de perdê-lo. Sempre tive medo das perdas. E eu chegava a chorar pelas perdas que ainda nem haviam acontecido, que talvez nunca acontecessem; mesmo assim eu chorava. E eu chorei pelo Poeta certa tarde. Ele havia sumido.
E foi por toda a semana que eu fiquei triste. Eu pensava no Poeta constantemente. Queria esquecê-lo, queria que ele deixasse de existir. Mas tinha medo que isso acontecesse, que fosse verdade. Tinha medo que ele realmente deixasse de existir. Então parei de pensar assim. Eu o esperava de braços abertos.

Era pouco mais de seis e meia da noite e eu estava saindo para o trabalho quando eu vi, desnorteado na esquina, o Poeta. Perdido. Sem rumo. Sem esperanças. Desci do carro e após me ver, se deu numa seqüência de miados que só podia ser saudade. Eu me dei numa seqüência de gargalhadas. Talvez nós dois estivéssemos gargalhando. O levei pra casa e percebi alguns ferimentos. Um acima do olho esquerdo. Outro na articulação da pata dianteira direita. Parei de gargalhar. O entreguei pra minha mãe e pedi que ela o medicasse e cuidasse dos ferimentos. Ela faria sem eu pedir. Ela ama os bichos.
Com a volta do Poeta tudo ficou mais suportável. O marasmo de domingo não deixou de ser marasmo, mas com ele chega a ser mais que um dia de tédio. E quando estou deitado no sofá assistindo algum filme, sem que eu o chame ele se deita ao meu lado. Cheio de pose. Como um renomado crítico de cinema pronto a dar sua opinião sobre a atuação de Tom Hanks. E dava. Meneava a cabeça como quem aprovara a atuação.
Não sei quantas vidas o Poeta já perdera. Tampouco sei quantas viveu. O que sei, é que, se eu pudesse, o faria viver mais do que apenas sete.

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