O que incluir no poema para lhe dar
a forma desejada e sonhada com carinho
tão zeloso que beira a obsessão?
O que incluir no poema para que ele
se torne digno de ser lido e relido
copiado à mão por idealizadores
românticos
entregue em forma de bilhete a
apaixonados
por outros apaixonados que lhe roubem a
autoria
digno de ser estudado e dissecado em
análises
rítmicas, sintáticas, morfológicas,
métricas, estruturais
por gramáticos e literários que lhe
torçam o nariz
(não importa porque já seria
realização suficiente
tomarem de seu tempo para notar que
dissemos algo)
e quem sabe até figurar em coletânea
de novos talentos?
O que incluir no poema, nós que por
certo
nascemos no século errado, conformados
já
ou não com a decepção de não ter
nada a dizer
que já não tenha sido melhor
expresso, composto
pelos que sabiam “eternizar a vida
breve em arte”*?
O que incluir no poema, agora que a
poesia morreu
e a palavra não possui a mesma força
de outrora
e surgiram televisão e salas de bate
papo on line
num tempo sem brilho além dos das
vidraças
de escritórios intermináveis na
Francisco Glicério
um tempo em que a graça das coisas
esvaiu-se
restando apenas o cinza antipoético do
concreto
e as pessoas não mais fazem viagens ao
país dos sonhos
e não têm tempo nem interesse em ler
poesias e romances
porque já não há mais nenhuma
ingenuidade no mundo?
O que incluir no poema como ferramenta
estética
nós, singelos operários sem carteira
da palavra
proletários de poesia rústica, mal
acabada
como havemos contornar o suplício de
transcrever
em bela forma a amargura n’alma
ressecada
como havemos disfarçar a ardente
metalurgia
de produzir rimas menos que pobres,
paupérrimas
para serem consumidas apenas por nós
mesmos?
O que incluir no poema, que
ingredientes usar
a fim de torná-lo atraente também a
outros olhos
os olores de flores da primavera febril
surgindo
pores-do-sol em horizontes sempre
longínquos
a meia luz do abajur cortando a
escuridão
quase palpável da noite mais negra,
gotejando luz
como uma fonte reticente de idéias e
desejos
escadas, pontes de madeira em cidades
mineiras
anjos e fadas ou marcianos d’outra
galáxia
casas amarelas com peixinhos
azuis-celeste
paixões ardentes adolescentes
salpicadas de perfeição
a inquietação juvenil arrogante,
julgando-se capaz
de movimentos que transformarão o
mundo
musas inspiradoras de formas perfeitas
e almas límpidas
o ódio visceral, a morte abrupta,
causticante
maravilhas mil de um Brasil antagônico
o que, afinal, incluir no poema?
Como fabricar o poema,
produzir algo novo
vibrante, cheio de vida,
detalhes e sentido
e não apenas plagiar e
plagiar anjos e bandeiras
como ser mais que uma
banda de rock pós anos oitenta
e na experiência da
tentativa não ficar com cara
de grupo de pagode da
estação passada?
Fechou-se a porta. A velha fábrica
faliu.
Hoje apenas a industrializada produção
em massa
de enlatados insípidos a serem
consumidos em fast foods
nada que lembre a sutil delicadeza dos
feitos à mão
de um séc’lo em que se espremendo
forte a alma
retirava-se néctar a ser degustado
prazerosamente.
24/04/05
*A Música da Terra – Carlos
Drummond de Andrade